Publicidade


Com permissão judicial no Recife, benefícios da ‘maconha medicinal’ desafiam tabus

27 nov 2021|Postado em:Notícias, RECIFE

 

Com permissão judicial no Recife, benefícios da 'maconha medicinal' desafiam tabus

Óleo extraído da Cannabis ajuda a tratar problemas relacionados a estresse e ansiedade – Foto: Paullo Allmeida/Folha de Pernambuco

Associação obteve autorização da Justiça para cultivar Cannabis. Dona de casa de Paulista, na Região Metropolitana, conta vivência com o filho, que tem autismo.

“Graças a Deus, mesmo, que a gente tem a Cannabis”. A dona de casa Cláudia Ferreira, 43, não se continha ao falar sobre as evoluções do filho, um “galalau” de 13 anos que, durante a entrevista para esta matéria, batia palmas na direção do céu enquanto brincava em uma casa de madeira no Ecoparque das Paineiras, no Centro de Paulista, no Grande Recife.

Clarck – assim batizado em reverência ao personagem que se transforma no Super-Homem, Clark Kent, mas com um “c” a mais por um erro no registro do cartório – tem transtorno do espectro autista (TEA), de grau severo, e toma, todos os dias, gotas do óleo extraído da planta que produz a maconha.

O filho de Cláudia é um dos 108 beneficiários da Amme Medicinal, associação recifense que, no último dia 16, obteve na Justiça autorização de cultivo e manipulação da Cannabis sativa para “fins exclusivamente terapêuticos”.

A liminar, concedida pela juíza Joana Carolina Lins Pereira, titular da 12ª Vara Federal em Pernambuco, restringe a permissão apenas às pessoas que já eram associadas até a data da decisão e estabelece algumas medidas de controle, como o cadastro dos pacientes e o envio de relatórios sobre o plantio e a produção.

Planta igual, usos diferentes

Antes de seguirmos com a história de Cláudia e Clarck, cabe entender o contexto que a envolve. Cannabis sativa é o nome científico da planta que contém diversos compostos químicos, chamados de canabinoides, sendo os mais famosos deles o canabidiol (CBD) e, principalmente, o tetrahidrocanabinol (THC).

É esta última sigla que provoca os efeitos psicoativos da substância conhecida como maconha. Mas esses efeitos só são ativados pela inalação do vapor gerado a partir da queima da erva, processo diferente da produção do óleo canábico, feito por extração “a frio”.

“Quando se esquenta o THC a uma dada temperatura, nós produzimos uma reação de descarboxilação da molécula, que a ativa do ponto de vista psicológico. Sem essa ativação, ela não dá alterações no comportamento ou no humor. Os efeitos dependem da proporção de THC e CBD e do quanto há de ativação”, explica o professor de Saúde Coletiva Rodrigo Cariri, que leciona no curso de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde coordena um projeto de extensão com pacientes que usam a Cannabis. “Os usos recreativo e terapêutico são completamente diferentes”, acrescenta.

Já para produzir o óleo, é feita a dissolução das moléculas com álcool. “A gente reveste as flores [da planta] no álcool, que faz dissolver os canabinoides. E, a partir de um processo de filtragem por evaporação, a gente obtém o extrato puro, que é o insumo principal para o produto”, detalha o fundador e presidente da Amme Medicinal, Diogo Dias.

De acordo com o especialista, a maior parte dos público atendido no programa são pessoas com autismo. Mas o óleo também pode ser indicado para quem tem câncer e faz quimioterapia e para pacientes com epilepsia, fibromialgia e dores crônicas, Parkinson, Alzheimer e transtornos de ansiedade e humor.

Cláudia Ferreira, 43, com o filho Clarck, 13Cláudia Ferreira, 43, se dedica integralmente a cuidar do filho, Clarck, 13 (Foto: Paullo Allmeida/Folha de Pernambuco)

Em busca de um remédio

Logo após a confirmação do diagnóstico de autismo, quando Clarck mal tinha passado dos dois anos, Cláudia pediu demissão do emprego como gerente de um posto de gasolina para se dedicar inteiramente à criação do filho.

A família, formada ainda pelo pai do garoto, Cleiton, que trabalha como vigilante, mora em Pau Amarelo, levando uma rotina entremeada por atividades na escola e na ONG perto de casa onde Clarck faz as terapias. Antes da descoberta da Cannabis, foi longo o percurso para encontrar uma medicação apropriada para Clarck, que, quando pequeno, dependia muito da mãe para as atividades do dia a dia, fosse na hora de se alimentar ou de ir ao banheiro.

Com dificuldades na fala, na concentração e na coordenação motora, o menino também apresentava hiperatividade. Para tratar o problema, a neuropsiquiatria que o atendia na época prescreveu um medicamento, que não surtiu o efeito esperado.

“Ele chorava direto [após tomar a medicação]. Então, eu voltei para a médica, e ela passou outro remédio. E ele ainda passou um mês com esse medicamento, mas, quando começava o dia, passava a rir muito, depois começava a chorar”, conta Cláudia.

Depois da terceira medicação e de mais uma troca de médico, Clarck ainda teve surtos de estresse e ansiedade. “Do nada, começava a gritar, chorar, dava cada grito de terror, parecia que alguém estava matando ele. Teve uma vez que ficou três dias sem dormir”, recorda a mãe.

Qualidade de vida de Clarck melhorou após o óleo de Cannabis, diz a mãeQualidade de vida de Clarck melhorou após óleo da Cannabis, diz a mãe, Cláudia (Foto: Paullo Allmeida/Folha de Pernambuco)

Descoberta da Cannabis

Foi numa conversa com outra mãe de criança com deficiência, na clínica aonde leva Clarck para as terapias, que Cláudia ouviu falar pela primeira vez sobre as propriedades medicinais da Cannabis sativa.

“O filho dela sempre ficava na dele, não interagia, comia com sonda. A gente, às vezes, almoçava lá na ONG e, nesse dia, em que me encontrei com eles, percebi que o menino estava sem a sonda e prestava mais atenção na conversa. Ela disse que ia botar alguma coisa que ele não gostava. Esse menino deu um ‘não’, que a cozinha parou”, lembra. “A gente começou a perguntar o que ele estava tomando, e ela falou: ‘maconha’”.

Com um parecer médico, Cláudia deu o óleo a Clarck e percebeu uma melhora logo nos primeiros dias. Mais concentrado, o menino já conseguia calçar a sandália sozinho ou fazer as necessidades no banheiro. E assim foi por quase dez anos, quando deixou de conseguir o óleo temporariamente. “Ele ficou sem tomar por uns dois anos, mas não retrocedeu”, diz a mãe. Até que veio a pandemia. No isolamento social, longe da escola e das terapias, Clarck passou a ter convulsões. Foi quando Cláudia entrou em contato com a Amme e voltou a adquirir o óleo canábico.

Desde então, já se vão mais de seis meses sem crises epilépticas. “Você pode ver que meu filho é uma criança saudável. É muito raro ter gripe, come muito bem. E só o fato de a juíza ver a necessidade, de primeira… A gente está fazendo história”, afirma Cláudia, que também tomou o medicamento na época em que teve um descontrole de ansiedade. “Eu fui a uma consulta com o meu filho e chorei muito. Então, o médico me sugeriu tomar. E, realmente, eu vi diferença. Voltei a dormir direito e fiquei mais concentrada. Dei até uma palestra sobre o autismo e [o óleo da] maconha”, conta ela, rindo.

Infográfico - Cannabis

Liberação rigorosa

Cercado de tabus, o debate sobre os usos da maconha, aos poucos, avança no mundo (veja no infográfico). No Brasil, onde o plantio da Cannabis sativa, mesmo que para fins terapêuticos, continua proibido, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) regulamentou apenas a venda de produtos importados à base de canabidiol.

No entanto, algumas exceções começam a aparecer pelas vias da Justiça. Em 2017, a associação paraibana Abrace Esperança foi a primeira a conseguir uma permissão para cultivar a Cannabis e fornecer o óleo para pacientes cadastrados.

Na decisão que concedeu a autorização à Amme, a juíza determinou que a instituição mantenha o cadastro dos associados, com documento de identificação e receituário prescrevendo o uso do produto, laudo informando que todos os outros tratamentos possíveis já foram tentados “sem sucesso” e informações sobre a quantidade de óleo fornecida e as datas de entrega.

“Essa decisão é uma excludente de ilicitude. Ela nos dá possibilidade para expor nosso trabalho. Pela liminar, a gente sai do escuro, pode usar o extrato para pesquisa e fica mais fácil fazer parcerias com as universidades. É um ganho em todas as áreas”, diz o presidente da Amme Medicinal, Diogo Dias.

 

Fonte: Folha de Pernambuco

Compartilhe:

Deixar uma resposta


You may use these HTML tags and attributes: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>

*


%d blogueiros gostam disto: